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Análise: 'Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças' e memória

Rubem Alves, em entrevista, já na sua maturidade, disse:


“Se você gosta de um lugar, vou te dar uma dica: não visite esse lugar, pois acreditamos que quando voltamos para esse lugar, vamos encontrar o tempo, o tempo não nos pertence! Siga meu conselho, é muito melhor ficar com a imagem, com a memória."


Se considerarmos a afirmação de Rubem, no sentido de que ao visitar um local, esperamos encontrar as mesmas alegrias que nos fizeram gostar desse lugar, podemos dizer que o mesmo ocorre com as pessoas? Que seria um erro, nos direcionar para uma pessoa amada esperando que ela seja a mesma que nos fez, justamente, abraçar esse mesmo amor?


Brilho Eterno de uma mente sem lembranças, filme de 2004, dirigido por Michael Gondry e roteirizado por Charle Kalfman. Tem como enredo um casal cuja uma das partes, Clementaine, decide apagar Joel, seu namorado, mediante uma briga por meio da clínica “Lacuna”, responsável por excluir memórias para se amenizar a Dor. Joel, acaba descobrindo o ocorrido e, em tom de vingança, busca o mesmo procedimento médico.


Durante o processo, Joel descobre que ele preferiria manter essas memórias, mesmo que dolorosas:


“Ao menos essa, ao menos essa”


É um dos clamores de Joel ao lembrar de uma das confissões de Clementaine, dizendo que, quando criança, tinha uma boneca que chamava de Clementaine, que a achava feia, todas as vezes que ela gritava: “Seja Bonita” era como se, magicamente, ela também pudesse ficar bonita.


Esse é apenas um de vários momentos lúdicos e memoráveis que o filme nos proporciona. Em uma abordagem técnica, o filme tem um grande mérito no que diz respeito à direção de arte. As cores têm sua importância, como as diferentes cores no cabelo de Clementaine, que indica sua personalidade e transparece a sua fragilidade emocional e insegurança. Gondry, por ter vindo da escola dos vídeos clips, é muito feliz na montagem, na fotografia bem próxima ao estilo “Câmera na mão”, e nos diversos truques que acompanham a narrativa toda, trazendo uma rima visual incrível, da desconstrução de uma memória que insiste em existir.


Na narrativa do filme (vale lembrar, não linear) há alguns dramas secundários, que funcionam de forma eficaz. Porém, para desenvolver esse texto, vou manter o foco no relacionamento do casal principal.

Joel, no que podemos ver no longa, é alguém bem restrito, tímido e com um certo gosto de leitura; constantemente, Joel mostra alguns pequenos trejeitos que mostram a inquietude e impaciência. Ele faz, por alguma razão, várias alusões a morte. Uma das brincadeiras com Clementaine, ele se joga no chão e passa catchup pelo pescoço, simulando a sua morte; em outra brincadeira, os dois amantes brincam de sufocar um ao outro; na vez dele ser sufocado, novamente, simula sua morte. Em uma das vezes em que Joel vai ver com Clementaine as estrelas, ele confessa:


“Eu estou completamente satisfeito, eu poderia morrer agora.”


E em seus desenhos, Joel parece sempre transfigurar a morte por meio da amada, como se por meio desta última, ele pudesse trazer a tona o seu desejo mais íntimo, de encontrar um deleite, um alívio, e seu subconsciente talvez tenha a esperança de encontrar esse alento na morte, ao mesmo tempo que ele vê na vivacidade e excentricidade de Clementaine, a esperança de viver; sendo assim, paradoxalmente, a imagem de cabelos Ruivos que se veste como a morte e navega no turbulento mar (desenhos que aparece durante o filme, feito por Joel)


Clementaine, por sua vez, se mostra alguém completamente oposta, ao mesmo tempo em que ela é espontânea e tem uma aparente alegria e graça em tudo que faz, carrega uma tristeza quase crônica, invocada em alguns momentos por Joel.


O Filme começa já próximo do final da projeção, depois do processo completo da retirada das memórias, dos dois personagens. Joel decide faltar do trabalho, e parte sem um rumo certo; nesse caminho, ele encontra Clementaine, onde um diálogo começa no trem. Joel dá carona para ela e começa assim, um novo relacionamento. Essa é uma das grandes virtudes do filme, ao deixar esse segundo encontro entre as duas mentes vazias um do outro, ele dá para o espectador que está vendo o filme pela primeira vez, Justamente, a impressão de um primeiro contato entre o casal.


Depois do longa mostrar todo o processo de esquecimento de Joel, mostra se, exatamente, o momento inicial do longa, um sem se lembrar do outro.


Se analisarmos bem a estrutura da narrativa, veremos que, nesse momento presente (os dois se conhecendo pela segunda vez, a consciência de um atrito, e reconciliação) são as únicas que realmente existiram para Joel e Clementaine, o período transitório da narrativa, das memórias, das alegrias e feridas do casal, não existiam mais. Esse momento passou a ser um vazio, não era nada mais que resquícios na mente; porém, o momento presente foi o que restou, e o resultado das experiências passadas, junto com a possibilidade, permitiu o perdão.


Apesar do relato de Kalfman ser fantasioso, ele não podia ser mais literal. As memórias de quem amamos se desfazem e são frágeis, por mias doloroso que seja um desligamento, uma ruptura, uma perda, há a um momento que em que a mente se esquece, ou que quando lembradas, as memórias não tenham tanto valor. Junto com as memórias, desligam-se as pessoas que, paradoxalmente, são sempre as mesmas se mudando, e nós, mudamos da mesma forma; sendo assim, com a desvalorização das memórias afetivas (momentos que fazem parte do humano) e a mudança constante do ser humano em si, nos dá a liberdade de pensar alguns dos motivos da fragilidade dos relacionamentos de uma forma no geral.


Pois, relacionamento nenhum pode viver apenas de memórias, por melhor que esta última seja e traga esperanças, o ser humano é um ser de presente. Sua memória, mesmo sendo o recurso valioso que é, é uma ferramenta inconstante. Nossa memória é fraca e se desgasta, mas como já disse, a memória é uma ferramenta para a esperança. E quando essa memória funciona em relação a uma pessoa, as chances de a perdemos são inúmeras; como dito no início deste texto, podemos dizer que quando guardamos uma memória, seja esta boa ou má, e a relacionamos de alguma forma com o momento presente, há o enorme risco da frustração, já que por não estar no momento presente, ela pode ser irreal, não condizente com o momento presente. Sem contar, lógico, com a possibilidade da memória ser uma invenção, ou seja, a conservamos e a moldamos como bem se entende.


Portanto, o momento da narrativa em que o casal entra em contado com esse passado desconhecido, e ao mesmo tempo, com esse possível futuro, pode muito bem representar, a consciência de todos esses fatores citados acima, da fragilidade de um relacionamento; sendo assim, quando Joel diz “Ok”, é simplesmente o momento em que se diz: “sim, eu aceito as consequências e tenho total ciência da fragilidade de tal decisão”. Sendo assim, esse é Amor segundo Charle Kalfman, o momento em que se diz sim apesar dos pesares, para algo que, na lógica prática, não tenha tanto sentido nem proveito.

Uma imagem que mostra muito bem essa “frustração” e sua aceitação, é a cena da neve na praia. Que aparece no final. A praia, coberta de neve, é frustrante e humilhante, pois não é a forma em que temos em nossas expectativas. Mas, no final do filme, os dois aprender a se divertir nessa circunstância, mesmo que eles tenham que aprender a viver isso de novo, e de novo.


Os momentos de diálogo entre os dois e as memórias em que ambos estão se relacionando, chegam a um nível invejável de química entre os dois atores. E, como algumas das grandes obras de arte, os diálogos não são de cunho político e social, ou com grande carga psicológica; porém, todos esses momentos refletem, em síntese, a beleza de um momento leviano e inútil, que é o relacionamento a dois, o prazer de simplesmente estar perto.

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