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Don L, "Roteiro pra Aïonus, Vol. 3" e exílio


Uma das minhas recentes descobertas músicas vem sendo o Rap Nacional, em um cenário rico, plural, e cheio de novidades a cada esquina. Além dos já consagrados Emicida e Criolo, alguns nomes menos populares vem mostrando uma musicalidade de peso, como o Makalister, Baco Exu do Blues e o notório Rincon Sapiência, citando apenas alguns. Porém, nenhum álbum vem tocando tanto em looping, no Spotify e na minha mente, quanto o álbum "Roteiro pra Aïonus, Vol. 3", de Don L.

"Não Existe amor em SP"

Pernambucano, radicado em São Paulo, o Rapper chamou muita atenção com esse trabalho, recebendo grandes elogios da crítica, sendo ovacionando como uma obra complexa e sendo colocado até como uma obra-prima. O trabalho carrega tanto características de um Rap mais marcado, com batidas fortes e um baixo dominante, como na faixa “Fazia Sentido”, quanto a instrumentação de banda puxadas para o Jazz, como o instrumental “Cocainterlúdio”. Mas, complementando os arranjos, o que mais se destaca no álbum é o trabalho de escrita, com suas letras emocionais e narrativa completa.

O álbum inteiro pode ser considerado como metalinguístico, Don L, se referindo a ele mesmo ou não, faz observações constantes sobre si mesmo, sua vocação, e até o mercado fonográfico brasileiro. Isso é muito comum no Rap no geral, uma música que se auto reflete no autor e no ato de fazer música. Mas aqui, o assunto está além da simples representação de uma realidade, mas em contar uma jornada e narrativa com início, meio e fim, os três atos, sendo este álbum o último, contando a história de alguém que se entregou nesta jornada de autodescoberta, desconstrução e construção.

Em entrevista ao Noisey, o próprio Don L sinaliza isso. O título, "Roteiro pra Aïonus, vol 3" simboliza o destinatário e o tom da escrita, referenciando o cineasta pernambucano Karin Aïnouz, que fala muito sobre exílio e o não pertencimento.

"Ele tenta traduzir um inconformismo cearense, de ver as possibilidades que a gente tem e não se conformar com elas. O Céu de Suely tem essa coisa de ser estrangeiro em todo lugar, inclusive no lugar de onde você veio. Você vislumbra coisas maiores, pensa 'essa cidade não é suficiente pra mim, preciso ir embora', e, quando você vai, acaba se sentindo mais estrangeiro ainda. No fim, você será sempre um estrangeiro."

O "Vol 3" sinaliza a ordem da obra. Essa é a terceira parte de uma jornada, falando do final dela, uma história contada de trás para frente. Os outros álbuns, sem data de lançamento, contarão o desenvolvimento e a origem de Don L.

Sendo assim, neste volume 3, sentimos uma voz cansada e calejada, representação essa dada logo na apresentação do trabalho, na faixa de abertura "Eu não te Amo”. A primeira vista, ela parece ser um pronunciamento sobre relacionamento amoroso, mas se trata muito mais sobre a indústria da música. A declaração "Eu não te amo" pode ser interpretada como algo direcionado aos ouvintes, referindo-se, inclusive, ao pagamento que deve ser feito para ouvir sua história, e de que, no final, a música também se tornou um produto. Não que essa falta de amor seja literal, mas sinaliza o amor e afetos que foram sendo deixadas durante o caminho, apontada em várias outras músicas do disco, como na faixa "Se num for Demais".

"Fazia sentido" é uma crítica ácida a toda a indústria musical no Brasil, apontando tudo o que o Rap se tornou e um dia já foi, a mediocridade da música brasileira, e as dificuldades do meio, citando nomes grandes do mercado e, sem polpar palavras, aponta criticas duras, mas respeitáveis. Porém, uma das faixas essenciais do disco, é a terceira, intitulada "Aquela Fé".

"Uma frase muda o fim do filme."

A música começa com uma batida marcada e com a harmonia repetitiva, amenizada pelo som do piano, que traz o tom melancólico. Na letra, o Rapper intercala suas desesperanças para com o presente, em contraste com as dificuldades do passado carregadas de sonhos e inocência. Chega até a ser citado uma fé religiosa, que mostra ter sido distorcida por figuras do passado, que continuam perpetuando uma visão torta de Cristo, reproduzindo um abuso de poder cíclico. Mas não é só a fé religiosa que está em questão, mas é a fé e esperança no outro, no seu meio, e sobre si mesmo. A antiga ideia da inexperiência impulsionada pela falta de conhecimento, gerando uma fé juvenil, mas genuína. A primeira vista, as frases parecem não se intercalar, mas elas revelam um diálogo contextual. O autor cita realidades cruéis e sua perspectiva, enquanto repete em círculos a falta que aquele fé, inocente, faz.

A partir da segunda metade da música, intermediada pela sentença: "uma frase muda o fim do filme", entra uma segunda voz, do colaborador Nego Gallo, contando a narrativa de alguém que, mesmo não se reencontrando totalmente, acha esperança na jornada do outro. No caso, um mendigo que canta “versos que eu vivi noutro momento”. A esperança não é totalmente revitalizada, mas a partir do outro, com empatia e simpatia, se encontra uma fé de continuar e encontrar os motivos que o levou a lutar. Uma fé na fé.

Depois disso, a música tem um pequeno epilogo, seguido de um piano relutante, cheio de pausas, e várias vozes masculinas, ironicamente, falando da dificuldade da autodescoberta e do complexo labirinto interno de cada um. No final, há o reconhecimento de que a jornada agora é encontrar o que se perdeu logo no início, a esperança e fé que impulsionou o deslocamento em primeiro lugar. Em uma jornada cíclica, mas carregada pela memória.

"E o tempo não volta."

O álbum continua falando dos mais diversos assuntos, como o uso de drogas e sexualidade, acompanhado de faixas com camadas, dinâmicas e vivas, representando e aprofundando a riqueza lírica do trabalho. O fim da jornada é em uma reflexão sobre a brutalidade, dinamismo e liquidez do tempo, que não volta, tornando a jornada mais complexa e caótica. Voltar pra casa não é uma opção, mas não importa o quão rápido você corra, o sentimento de que algo ficou para trás é implacável.

Carregado de referência, Don L faz um álbum memorável em todos os aspectos, fazendo uma homenagem a esse sentimento de não pertencimento e uma declaração honesta de uma história que começou pelo final e caminha para seu destino, a estrada para casa e o sentimento de pertencimento.

REFERÊNCIAS:

Entrevista do Don L para o Noisey:

noisey.vice.com/pt_br/article/bj8qxq/don-l-roteiro-pra-ainouz-vol3-entrevista


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