Análise: 'Atlanta' e a luta pela sobrevivência
- kayronbrasil
- 26 de mai. de 2018
- 6 min de leitura

Donald Glover é um dos artistas mais interessantes e relevantes trabalhando no entretenimento hoje. Saindo de um trabalho respeitável na TV com séries como 30 Rock e Community no currículo, o artista multifacetado consolidou sua carreira como músico com o codinome de Childish Gambino e lançou sua própria série pela FX, Atlanta. Hoje, ganhador de premiações como Emmy, Globo de Ouro e Grammy, por sua carreira musical, também está marcando território na frente e atrás de grandes produções Hollywoodianas. Tendo uma participação no Homem – Aranha: Homecoming, sendo o Lando no filme do jovem Han Solo, e com o papel já confirmado como Simba na adaptação em live-action de Rei Leão. Além disso, assina a colaboração no roteiro de Pantera Negra, um dos filmes mais rentáveis de Super-Heróis, gênero que é a galinha de ouro do cinema na atualidade. Como se isso não fosse o bastante, em maio deste ano lançou o clipe This is America, um vídeo complexo e cheio de referências que explodiu na internet. Foram conquistas muito relevantes em várias áreas diferentes de atuação. Talentoso, carismático e provavelmente uma das personalidades do momento, não tem seu trabalho resumido a entretenimento por diversão.
Atlanta, Twin Peaks com Rappes
Atlanta é uma comédia dramática que conta a história de Earn, um jovem que se dispõe a produzir o rapper Paper Boy, seu primo Alfred, enquanto vivem as dificuldades de ser negro e pobre na cidade de Atlanta. A série foi um sucesso de crítica e público, ganhando premiações importantes como Emmy e Globo de Ouro. Glover atua como o protagonista, em um papel menos expansivo se comparado aos seus papeis anteriores, incorporando um personagem sóbrio, contido, em meio a cores dessaturadas. O Ator também é produtor executivo, roteirista e dirige alguns episódios, dividindo a função com sua antiga parceria, Hiro Murai. Por ter trabalhado por anos no entretenimento, Glover e sua equipe sabem chamar a atenção do público com piadas inteligentes e uma história cativante, mas o principal destaque da série é a forma dramática, cômica e surreal com que se passa a experiência de ser negro nos Estados Unidos.
Com duas temporadas, foi construída uma narrativa envolvente, sobre contos que funcionam tanto independentemente quanto em conjunto, mostrando relacionamentos complicados, absurdos que remetem a sentimentos reais e personagens complexos, conflitantes e com seus próprios demônios internos, por suas escolhas, pressões, responsabilidades, ou pelo peso que o perigo eminente trás. Aqui é claro: qualquer deslize é fatal, a condenação está virando a esquina.
SPOILERS
Buscando um Lar
A primeira temporada começa anunciando esse perigo, com Paper Poi se envolvendo em um tiroteio, envolvendo Earn e Darius, amigo fiel de Alfred, se revelando a figura mais excêntrica da narrativa. A série nunca mostra o real desfecho do tiroteio, mas o fato é que não é um grande evento, algo parecido pode acontecer de novo. Durante o piloto, vemos que Earn está quebrado financeiramente, não tendo nem onde dormir, sendo recusado pelos pais e não se sentindo totalmente em casa com a mãe de sua filha, Van, com a qual não mantem um relacionamento sério, mas continua tendo uma relação próxima. A situação o faz ir atrás do seu primo para uma oportunidade não só financeira, mas de se provar.
No último episódio da temporada, The Jacket, nos é mostrado onde Earn vem dormido esse tempo todo. Depois de uma noite de festa, o jovem procura por sua jaqueta, usada aqui como MacGuffin, objeto que motiva a jornada do personagem, procura que termina com um traficante sendo baleado usando sua jaqueta, pré-anunciando o perigo que ele sempre correu. Descobrimos que ele não estava atrás da jaqueta, mas de uma chave que lá estava. Van oferece sua casa para Earn, mas, mesmo estando tudo bem entre eles, prefere seguir para um armazém, onde encontra sua cama. O leito é extremamente importante e simboliza o que moveu o personagem a temporada toda. Não só um espaço físico para chamar de seu, mas a ideia de que, finalmente, está conquistando alguma coisa por ele mesmo. A música que toca ao fundo colabora para essa ideia, Elevators (Me & You), OutKast, fala sobre as dificuldades de se sustentar, criar seu espaço, e que o trabalho do rapper é tão difícil quanto qualquer outro, mesmo com a fama.
A Luta pela sobrevivência
Se na primeira temporada Earn se mostra um personagem que busca um lugar para si, na segunda temporada, essa jornada continua, com ele sendo obrigado a se provar. Dessa vez, o presságio é ainda mais agressivo. Sem envolver nenhum dos personagens principais, a estreia da temporada mostra uma longa sequência de assalto em uma lanchonete, deixando uma inocente ferida. Anúncio de enredo é quando algo no começo da narrativa simboliza ou indica algo que vai acontecer mais para frente, e isso acontece aqui. Earn começa a ser deixado de lado na narrativa. Depois de ser confrontado pelo seu Tio Willie, um fracassado como produtor, nas suas relações pessoais e possível futuro, Earn é deixado para fora da casa de Alfred, que tem um novo hospede na casa, Tracy, deixando-o sem lugar para dormir mais uma vez. Seu relacionamento com Van no episódio Helen fica ainda mais fragilizado, deixando o produtor cada vez mais de lado, dando espaço para episódios como Barbershop, onde Alfred percebe por meio de um barbeiro desastroso e irresponsável, que manter seu primo como seu produtor apenas por preferência pessoal, pode prejudicar tanto a ele quanto ao próprio Earn. Em Teddy Perkins, um dos episódios televisivos mais comentados do ano até agora, mostra um mundo surreal, ridículo, divertido e assombroso de um homem obsessivo por fama a qualquer custo, narrativa que só poderia ser protagonizada por Darius. Além disso, há o episódio Champagne Papi, focando em Van e sua busca pela autenticidade em uma sociedade tão focada nas aparências. Nisso, Earn vai sumindo de sua própria narrativa, culminando nos últimos três episódios, com queda, redenção e, entre eles, uma epifania. No episódio North of the Border, fica claro que Earn perdeu o controle, depois de uma festa do pijama desastrosa, é confrontado pelo seu primo sobre a possibilidade de sua substituição por um produtor que ambos conheciam. Desesperado, Earn tenta recuperar o centro da narrativa, literalmente, a força. Reage fisicamente quando é roubado e desafia Tracy em uma luta física, simbolizando a retomada de poder, falhando miseravelmente. No episódio seguinte, FUBU, o que poderia ser um flashback autoexplicativo, clichê, e Freudiano no pior sentido, com uma cena que justifica todos os comportamentos dos personagens, se torna um complexo retrato de um jovem Eran, um Alfred em formação, e as consequências e perigos eminentes sempre batendo na porta. E, às vezes, sobreviver nesse ambiente pode significar sacrificar alguém.
Depois da construção de toda a série, a brutalidade em Teddy Perkins, o assalto em Woods, à expectativa era de que algo igualmente perigoso e gráfico surgisse no último episódio da temporada, mas a entrega é feita de outra forma, o que segue é um episódio profundo, emocional e detalhista, Earn está perdendo tudo, em suas palavras, seu mundo está desmoronando. Ele já não tem Van como um relacionamento tão próximo, sua filha pode se mudar em favor dos estudos, e seu primo está pensando seriamente em substitui-lo. O perigo físico dá espaço para uma catástrofe emocional quase certa. Em Crabs in a Barrel, o episódio acompanha a embarcação do grupo para o inicio de uma Turnê na Europa. Antes de embarcar, a câmera foca no sofá no meio do quintal em que Alfred e Darius fumavam maconha. Juntando os três naquele mesmo lugar antes de uma possível mudança, remete o sentimento de nostalgia e o aviso de que momentos como aqueles podem nunca mais se repetir. O Anúncio do fim da jornada do Earn é aparentemente concretizada quando, na seção de detector de metais do Aeroporto, o produtor encontra a arma do tio, aquele que temia se tornar, que esqueceu de retirar da bolsa antes de embarcar. O que é mostrado para nós, é que Earn incrimina alguém, o que dá á entender é que ele colocou a arma nas coisas outro Rapper, remetendo a tragédia da infância em FUBU, onde um homem negro sacrifica outro homem negro para sobreviver. O discurso emocional de Alfred já no avião remete a isso, que o jovem produtor não é só mais um a ser descartado, mas alguém com quem ele se importa e que se importa de volta. Quando Alfred vê o rapper que iria o acompanhar na turnê entrando no avião e trazendo a notícia que seu produtor, o que substituiria Earn, fora pego pelas autoridades, fica claro que o movimento foi outro. Earn não é mais a criança assustada que sacrificaria qualquer um para sobreviver, esse é o Alfred, é o que ele faria. Earn se mostra um homem consciente em suas ações e em sua luta pela sobrevivência, Como na primeira temporada, o personagem amadurece cada vez mais. O episódio termina com Taylor sendo deixado para fora da casa de Alfred, remetendo ao final do primeiro episódio da temporada. Earn respondeu não com uma violência física, mas com um movimento hostil em resposta a um ambiente que exige que ele se prove o tempo todo.
Sendo Real com o Surreal
Sendo assim, Atlanta não é apenas uma coleção de boas piadas e histórias engraçadas, mas é um drama complexo com personagens multidimensionais e profundos. As ações não são justificáveis, mas o absurdo, que parece mais real do que a realidade, mostra a visão de um artista que, mesmo envolvido no entretenimento mais escapista, não deixa de pensar nas engrenagens que movem a sociedade ao seu redor.
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